A plasticidade cerebral de Karl Lashley


Karl Lashley foi aluno de John Watson e, consequentemente, um dos primeiros expoentes da primeira geração de behavioristas americanos. Chegou a escrever um artigo sobre a interpretação da consciência segundo o behaviorismo watsoniano (Lashley, 1923a, 1923b), aderindo à pratica comum em psicologia de traduzir velhas idéias em novos jargões. Entretanto a maior contribuição de Lashley para a ciência se deu a partir de experimentos no que hoje chamaríamos de neurociência. Lashley aprendeu com Watson, que aprendeu com Loeb (Boakes, 1984), o poder da explicação cerebral sobre o comportamento, e partindo disso, dedicou grande parte de sua carreira estudando o cérebro de ratos, em experimentos minuciosamente planejados que estudavam o efeito de ablações (um procedimento cirúrgico de retirada de grandes porções do cérebro) sobre a aprendizagem, em especial a aprendizagem de labirintos (método padrão da época, muito antes das caixas de condicionamento operante). Uma das afirmações mais veementes de Lashley versava sobre a plasticidade cerebral, muitas décadas antes dela explodir como uma vedete queridinha da neurociência moderna.

Recentemente dei de encontro com um post chamado "Neural plasticity isn’t new" em um blog afiliado a ResearchBloggin. O autor aponta que muitos trabalhos em neurociência (em geral blogs) vem apontando erroneamente que a plasticidade neural foi uma das grandes descobertas das últimas décadas. A partir disso, o autor do post mostra que a idéia já circulava robustamente há muito mais tempo pela literatura científica. Apartir de uma breve recoleção de citações muito bem escolhidas, o post chega até os trabalhos famosos do psicólogo canadense Donald O. Hebb, da década de 1940, como precursores da plasticidade cerebral. Entretanto, nada foi falado sobre o behaviorista Karl Lashley. Uma pena, pois Donald O. Hebb, foi aluno de Lashley (Boakes, 1984).


Vídeo 1. Pequeno documentário sobre a carreira de Donald O. Hebb.

Antes de Donald Hebb lançar sua afamada obra, os resultados de Lashley, seu professor, nos estudos de ablação apontaram que a a retirada de tecido cerebral (em especial de áreas do cortex cerebral) deteriora em diferentes medidas o desempenho de um sujeito, tanto em tarefas que ele já aprendeu, quanto na aprendizagem, de novas tarefas. Entretanto, o desempenho não se deve ao local da lesão, e sim à quantidade de tecido destruído (Gardner, 1985). Os dados eram claros: quanto maior a lesão, pior o desempenho, independente da localização da lesão.


"Todas as células do cérebro estão constamente ativas e participando, por uma espécie de soma algébrica, de toda atividade. Não existem células especiais reservadas para memórias especiais" (Lashley, 1950, p. xi).
Lashley estava lançando um desafio à duas fortes tendências dos estudiosos do cérebro: o localizacionismo e o reducionismo. Para Lashley, era o cérebro como um todo o responsável pelo ordenamento do comportamento, e seu professor, Watson, já dizia que era o organismo como um todo que se comportava (Watson, 1972, p 28). Sim, não foi Skinner quem inventou isso. Lashley foi bastante incisivo em dizer que não haviam áreas específicas para comportamentos específicos, a revelia de achados duvidosos e sistematicamente questionados de Broca e Wernicke (cf. Marie, 1906), que afirmaram ter encontrado circunvoluções cerebrais fortemente ligadas à fala (Gardner, 1985). Entretanto, apesar do início atrapalhado nas afirmações de Broca e Wernicke, hoje o localizacionismo (não tão restrito como em suas primeiras formulações) é real e aceito indiscutivelmente na comunidade científica. Neste tópico, ocorreu algo comum quando duas propostas antagônicas são fortemente discutida a luz de dados conflitantes: a reconciliação da antiga dicotomia em um continuum. A ordenação do comportamento é resultado do funcionamento do cérebro como um todo, entretanto, existem claras áreas cerebrais que possuem preponderância na ocorrência de determinadas funções comportamentais (Gardner, 1985). Donald O. Hebb, o aluno de Lashley, foi um dos primeiros a ordenar o continuum entre o localizacionismo e o holismo cerebral, em sua obra clássica, The Organization of Behavior, de 1949 (Gardner, 1985). O holismo cerebral irrestrito de Lashley, que o aproximou da fantástica psicologia da Gestalt, hoje é mera curiosidade histórica, produto da pouco refinada técnica disponível na época, a ablação. Entretanto, o mesmo não pode ser dito sobre sua crítica ao reducionismo. Até hoje, por mais que jornalistas incautos anunciem, ninguém afirma que o cérebro explica instâncias específicas de comportamento, pois isso é reducionismo.

Os dados que sustentaram a posição holista ortodoxa de Lashley foram os resultados que apontaram uma capacidade de partes intactas do cérebro assumirem o controle de uma propriedade cerebral quando partes fortemente relacionadas a esta propriedade fossem destruídas (Gardner, 1985). Lashley chamou este fenômeno de plasticidade cerebral, em "Brain Mechanisms and Intelligence", em 1929.

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Karl Lashley foi o motor da virada do pêndulo entre o localizacionismo extremo e o holismo igualmente extremo. Foi a partir de uma grande quantidade de dados e de criticas audaciosas (bem aos moldes de seu professor, Watson) que Lashley provocou a neurociência a rever sua epistemologia remanescente da frenologia, lançando à comunidade científica um robusto conjunto de evidências empíricas que davam indícios da versatilidade impressionante do cérebro animal.

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Bibliografia

Boakes, R. (1984). From Darwin to behaviorism: psychology and the mind of animals. Cambridge University Press. [Google Books]

Gardner, H. (1985). A nova ciência da mente. 3ª edição. Edusp. São Paulo.

Hebb, D. O. (1949). The organization of behavior. New York, John Wiley.

Lashley, K. (1923). The behavioristic interpretation of consciousness. I. Psychological Review, 30 (4), 237-272 DOI: 10.1037/h0073839

Lashley, K. (1923). The behavioristic interpretation of consciousness ii. Psychological Review, 30 (5), 329-353 DOI: 10.1037/h0067016

Lashley, K. S. (1929). Brain mechanisms and inteligence. Chicago, University of Chicago Press.

Lashley, K. S. (1950). In search of the engram. Symposia of the Society for Experimental Biology. 4: 454-482.

Marie, P. (1906). Révision de la question de l'aphasie. Semaine Médicale, 21, 241-247.

Watson, J. B. (1972). El conductismo. 4ª edición. Editorial Paidos, Buenos Aires. [Compre na Estantevirtual] ou [Baixe a Versão original, em inglês, disponível na íntegra]