Evolução, comportamento e reducionismo



A eficaz observação da seleção do comportamento por princípios operantes, quando bem embasada conceitualmente (sem condescendências com "sujeitos reforçados"), inevitavelmente cria um certo desdém, um ceticismo franco, com relação a outras explicações aparentemente mais parcimoniosas.

E assim, concepções de "homem genético" (também chamado de "homem somático") e "homem cerebral", duas grandes apostas das ciências biológicas (cf. este comentário), acabam tornando-se difíceis de engolir, principalmente quando as asserções envolvidas são grandiosas, e as evidências pouco palpáveis.

O homem genético foi a grande onda da segunda metade do século passado. O sonho de encontrarmos todos os problemas e todas as maiores façanhas da humanidade no DNA, de um humano qualquer, fora lançado ao mundo junto a belas representações artísticas de ácidos nucleicos:


Hoje, algumas poucas décadas depois, regadas a muitos milhões de dolares, o genoma humano está completamente sequenciado, e pouco do sonho restou (tanto que um dos principais desbravadores do genoma humano, Craig Venter, mudou-se para outra área, igualmente cheia de ficção a longo prazo). Os geneticistas, em sua grande maioria, já são bem mais céticos quanto a possibilidade de haver genes para comportamentos específicos, ou mesmo para padrões mais amplos de comportamento. Ninguém, que mantenha algum tipo de idoneidade intelectual, ainda procura, hoje em dia, o gene gay (mesmo que jornalistas incautos digam o contrário). O pêndulo oscilou, da determinação estrita e específica, para a determinação geral, heurística e elástica. Pelo menos nessa área, pois em outra, começou a busca pelo neurônio gay... Entretanto, eu posso estar errado quanto ao quão estéril é este tipo de investida. Aguardo sérias evidências (desde o século passado).


Vídeo 1. Brincando com a falácia, vídeo humorístico anuncia o isolamento do gene cristão por cientistas gays.

Isso tudo é o pano de fundo pouco debatido da nova Psicologia Evolucionista, uma apropriação da sociobiológia da década de 70, feita por Psicólogos.

Como Analista do Comportamento, contextual, pós-moderno e calcado em um modelo causal selecionista, facilmente me interessei pelo leitmotif anunciado pela Psicologia Evolucionista: não apenas o nosso organismo é o resultado parcial de uma longa macroevolução; a mente humana (e, por mero compromisso à teoria, a dos demais animais) também é o resultado da poderosa seleção natural. Ok, afirmação curiosa!

Agora, façamos algumas considerações. O primeiro ponto, todos já sabem: que conceito de mente é esse? Ah, é o de sempre. Ok, "mal de behaviorista", um desvio de caráter irreparável. Mas tudo bem, podemos deixar de lado os problemas ontológicos e aceitar que a mente nada mais é do que o repertório, no caso humano, o repertório verbal (até que maiores complicações surjam adiante...). Já aprendemos com a Psicologia Cognitiva que o que importa são os dados, pois querendo ou não, todos observam, registram e trabalham com comportamento, o que muda são as discussões (que também são comportamentos, facilmente analisáveis).

Agora, vamos com calma. É hora de analisar um exemplo, um bem caricato. Tomemos "X" como um padrão de comportamento complexo, como por exemplo, a depressão. Ok. Eles realmente estão querem dizer o que eles escrevem? Pois eles escrevem coisas do tipo: "o comportamento 'X' está estabelecido (ou 'hard-wired', como diriam os descartianos digitais) no cérebro humano pois é observado em humanos em todo o globo terrestre, logo, esse padrão foi em alguma medida selecionado". Reducionista? Ingênuo? Fatalista? É o que parece.

O exemplo da depressão é real. Em um artigo de 2009 (Andrews & Thomson, 2009), os autores argumentaram que a depressão é adaptativa, em alguma medida, pois possibilita que o sujeito pare e pense sobre os seus problemas, isolando-se do resto do mundo para se concentrar no problema em questão. Ok... Diferente. Plausível. Mas, e as evidências? Nada que preste.

Como apontado por Schlinger (1996), as evidências da Psicologia Evolucionistas são bastante frágeis, pois são baseadas quase que exclusivamente na lógica evolucionista (o tipo de lógica utilizada no exemplo da depressão dado anteriormente), o que não passa de especulação. As outras fontes de "evidências" da Psicologia Evolutiva residem na comparação anedótica entre diferentes espécies (isso mesmo, à lá Romanes e Morgan!); e em dados estatísticos que não provém de um método experimental (leia-se: questionários e outros instrumentos que precisam de estatísticas avançadas para fazer algum sentido), o que produz no máximo frágeis correlações.

Estes três pontos são bases bastante perigosas para sustentar qualquer tipo de teoria, e podem ser facilmente atacadas e desacreditadas, como já foram, repetidas vezes. A especulação e a lógica evolucionista geram hipóteses intrigantes, como a do "lado positivo da depressão", e outras mais meigas, como a hipotése da biophilia (Wilson, 1984). Entretanto, não podem ser mais do que são: especulações. A arqueologia e a antropologia já deixaram bastante claras as inconstâncias desse tipo de especulação: a cada novo achado, inúmeras teorias tem de ser revistas. A teoria é necessária, mas precisa ter alguma base factual. Para a antropologia e arqueologia, há fósseis e demais achados arqueológicos. E para a Psicologia Evolucionista? Comportamento não fossiliza, é impiedosamente efêmero.

O brilho já vai se perdendo, mas não para por ai. Um artigo publicado na Scientific American (Bueller, 2009) chama a atenção pelo título: "Quatro falácias da Psicologia Evolucionista Pop" (Four Fallacies of Pop Evolutionary Psychology). Nele, o autor ataca, sem medo de ser feliz, toda a base da lógica evolutiva para o comportamento humano. Não vou estragar o delicioso texto fazendo meus comentários sem graça, no entanto, deixo-o na íntegra para a leitura de quem se interessar. Segue o Link: http://ow.ly/215Q0

Bom, pelo menos o texto dá uma dica: essas são as falácias da Psicologia Evolucionista Pop! O ramo Pop da área, segundo o autor, inclui Steven Pinker e outros figurões. O que indica, para os mais otimistas, que talvez ainda haja esperanças em alguns laboratórios quase-esquecidos pelo mundo a fora.

ResearchBlogging.orgDe qualquer forma, parece que a Psicologia Evolucionista ainda não é a panacéia decisiva para as antigas questões psicológicas. A evolução é fato, para os organismos. Sua unidade de seleção é, por maioria de votos, o gene. Genes sozinhos dificilmente (eu diria nunca) codificam comportamentos complexos específicos. Falta à Psicologia Evolucionista (dita Pop) a maleabilidade da aprendizagem, pois parece que em seu percurso, pouco ou nada foi aproveitado de toda a gigantesca literatura sobre o poder da aprendizagem (ontogênese, para os íntimos) permeada pela nossa tão querida, vasta e variável cultura humana. Explicações socio-culturais, nesses casos, são bem mais parcimoniosas do que explicações que remontam à ambientes ancestrais especulativos, na tentativa de explicar ocorrências de comportamentos complexos invariavelmente multideterminados.

Obs.: Atente que o conteúdo que o autor aqui apresentou não foi avaliado por seus pares. O que caracteriza tudo como um mero exercício de crítica e mau humor. Note também que não há desmerecimento algum à teoria da evolução, uma das maiores conquistas da ciência. Há sim um ceticismo quanto ao empréstimo exagerado, e carente de evidências, desta teoria pela Psicologia (que por sinal, tem um longo histórico de importações de modelos de outras ciências, em sua maioria mal sucedidas).

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Bibliografia

Andrews, P., & Thomson, J. (2009). The bright side of being blue: Depression as an adaptation for analyzing complex problems. Psychological Review, 116 (3), 620-654 DOI: 10.1037/a0016242

Buller, D. (2009). Four Fallacies of Pop Evolutionary Psychology Scientific American, 300 (1), 74-81 DOI: 10.1038/scientificamerican0109-74 [PDF]

Schlinger, H. D. Jr. (1996). What is wrong with evolutionary explanations of behavior Behavior and Social Issues, 6 (1) [PDF]

Wilson, E. O. (1984). Biophilia: the human bond with other species. Cambridge, MA: Harvard University Press [Compre na EstanteVirtual!]
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Outras referências que evocaram o texto

Rose, C. (2000). Genetic risk and the birth of the somatic individual Economy and Society, 29 (4), 485-513 DOI: 10.1080/03085140050174750 [PDF]

Ortega, F., e Vidal, F. (2007). Mapeamento do sujeito cerebral na cultura contemporânea. R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde, v.1, n.2, p.257-261. [PDF]

Uttal, W. R. (2000). The war between mentalism and behaviorism: On the accessibility of mental processes. Lawrence Erlbawn publishing. USA.

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Update I:

Richard Dawkins, na contramão de toda a veiculação jornalística da falta de aplicações médicas do sequenciamento do genoma humano: http://richarddawkins.net/audio/483182-age-of-the-genome-episode-1

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Update II

Encontrei um livro que faz uma forte crítica ao reducionismo genético. Escrito por uma bióloga e um jornalista (que escrevem como behavioristas). Fácil e excelente leitura, que recomenda o tempo inteiro o duplo olhar, igualmente atencioso, para a os genes e para o ambiente. Segue a referência.

Hubbard, R., & Wald, E. (1993). Exploding the gene myth. Boston: Beacon Press. [Prévia no GoogleBooks]

Apesar do título chamativo (afinal, tem um jornalista envolvido), o livro versa uma discussão bastante parcimoniosa.
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Update III

Post sobre os resultados de um estudo em larga escala que não encontrou nenhuma relação significativa entre genes e personalidade: Bad News for Genetics of Personality, do blog Neurocritic.

Vale notar que entre os estudos que indicam correlação e os que não indicam correlação alguma, sobra somente a incerteza. Pragmatismo zero.
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Update IV

Adaptar e esclarecer. Em virtude dos comments, devo esclarecer que a idéia do texto não é desmerecer nem a teoria da evolução nem a psicologia evolucionista, mas sim, criticar a forma como são feitas conclusões absolutas sobre a determinação do comportamento humano nas duas áreas. O texto não é uma alusão da invalidade de nenhum dos pontos apresentados, mas sim um pedido. O pedido é: ao traçar conclusões, olhe para o contexto completo, levando em conta três níveis, filogenético (biologico, evolutivo), ontogenético (psicologico, história de vida) e cultural (social e demográfico). É um pedido de integração, não de exclusão. Se o texto por vezes parece querer dizer mais do que isso, é em virtude de se tratar de um texto de blog, e não de uma revista científica indexada e analisada por seus pares.
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Update V

Trecho que descreve bem a idéia do post:

"Suppose that instead of being about morality and why people find certain things morally good and bad, this article had been about sweetness, and why people find certain things sweet and certain things sour. The Humean-Darwinian would have argued that humans have an evolved digestive system that distinguishes between good and bad sources of nutrition and energy; and that the human ‘sweet tooth’ is an evolved preference for foods with high sugar-content over foods with low sugar-content. If one accepted this premise, it would make no sense to complain that evolution may have explained why humans find certain things sweet, it cannot tell us whether these things are really sweet or not. It follows from the premises of the argument that there is no criterion of sweetness independent of human psychology, and hence this question cannot arise.
Of course, one may object to the premise, and claim that there really is such a thing as sweetness that human psychology is latching on to. But then this would be a different argument. One would have to make the case for an independent criterion of sweetness, and not merely assume it." [Curry, O. (2006). Who’s Afraid of the Naturalistic Fallacy?. Evolutionary Psychology, 4, p.242.]

O post foca justamente nesse "different argument", que como os críticos da área apontam, são recorrentemente negligenciados na literatura especializada (negligenciado inclusive no artigo da citação, na medida em que o autor levanta a importância desde nível de análise, ontológico, e não diz nada sobre como ele é, ou como deve ser feito). Como o autor da citação deixa claro, e eu concordo, esta negligência não invalida a área. Entretanto, a "realidade psicólogica" deve ser levada em conta, caso a idéia seja de uma explicação completa do comportamento humano. Neste ponto, se você quiser entender a realidade psicólogica de uma forma científiica (sem incorrer na chamada falácia anti-naturalista, que ocorre quando eventos psicológicos são de origem sobre-natural, não-filogenética), as vertentes tradicionais da psicologia experimental (humana, e especialmente não-humana) são uma ótima literatura. Essa é a conclusão do post.
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