Por que há mais mulheres do que homens no Brasil? Um exercício de análises distais e proximais de um fenômeno biossocial

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Dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio - PNAD (IBGE, 2012) indicam que há seis milhões de mulheres a mais que homens no Brasil. Essa informação é válida para a maioria dos Estados, com exceção daqueles da Região Norte do país onde o resultado é inverso. Quanto à faixa etária, a maioria dos homens tem entre 25 e 39 anos e a maioria das mulheres entre 40 e 59 anos. Há mais homens que mulheres entre 0 e 4 anos e a há mais mulheres acima dos 60 anos do que homens.

Essas informações indicam que há mais mulheres do que homens no Brasil, mas que na juventude há mais homens que mulheres e essa mudança na fase adulta pode ocorrer em função de uma longevidade feminina maior que a masculina. Essa longevidade pode estar atrelada a uma história filogenética que selecionou maior tempo de vida à mulher.

Kirkwood (2010) discorre sobre como a história evolutiva selecionou a reprodução ao invés da manutenção do organismo. Um organismo que vivesse eternamente provavelmente teria um custo de vida alto para sua manutenção e, eventualmente, uma fatalidade poderia interromper a sua vida e cada unidade biológica morta não teria uma continuidade em termos de descendentes. Dessa maneira, a reprodução é a alternativa da natureza de manter as espécies vivas, através de um processo auto replicante. Logo, o principal processo biológico que garante a continuidade da vida no planeta é a reprodução.

Entre seres humanos primitivos, a mulher exercia o papel de gerar a vida e de cuidá-la até que atingisse maturidade suficiente para sobreviver por conta própria e gerar sua própria prole. Já o homem tinha participação mínima no processo de geração, contribuindo com a fecundação do óvulo, e não cuidava diretamente dos filhotes, engajado em atividades de provimento da fêmea e da prole, seja por meio de caça ou pastoreio, e de defesa da posse territorial.

Além disso, homens e mulheres diferiam em termos de velocidade e multiplicidade de reprodução. A fertilidade da mulher dependia de um ciclo ovulatório mensal que a deixava propicia ao sucesso da fecundação apenas por três dias no mês. E uma vez fecunda, cada gestação durava nove meses e após isso, durante a amamentação, a mulher ainda ficava um longo período sem estar disponível a nova fertilização. Todavia, o homem estava disponível à fertilização de óvulos a cada cópula que ocorresse em qualquer período e o seu papel gerativo encerrava-se nesse mesmo ato. Logo, enquanto a mulher precisava de mais de um ano de intervalo entre cada fecundação, independente de quantos parceiros sexuais ela pudesse ter tido em um mesmo período, o homem podia fecundar continuamente várias parceiras. Portanto, o processo de transmissão genética da mulher era muito mais lento que o do homem ao longo de suas vidas individuais. Filogeneticamente falando, a mulher precisava viver mais tempo que o homem para garantir que seus genes fossem passados adiante.

As mitocôndrias são responsáveis em converter nutrientes em energia para o corpo e possuem um DNA próprio que é herdado congenitamente da mãe. Estudos apontam que mutações no DNA mitocondrial podem acelerar o processo de envelhecimento dos homens e aumentar riscos de doenças (Trifunovic, 2006). Uma possível explicação para essas mutações se manterem na espécie é a forma de herança desse DNA uma vez que o homem que carrega o DNA mutante não passa a seus descendentes, mas a mãe sim. Dessa forma, a seleção natural não atuaria sobre esse processo uma vez que mulheres portadoras não são afetadas e podem continuar carregando os genes ao longo das gerações. Dessa forma, há maior prejuízo para a longevidade masculina do que para a feminina.

Pinheiro, Dejager e Libert (2011) expõem que o cromossomo X contém 10% de todos os microRNAs do genoma humano, parte dos quais favorece a imunidade. As mulheres, apresentando um par de cromossomos X levariam vantagem sobre os homens quanto à imunidade, tornando-as assim biologicamente mais resistentes. Assim, a mulher apresentava melhores condições de saúde que o homem e isso contribuía para garantir que sua prole se desenvolvesse em indivíduos fortes e aptos a sobreviver no mesmo ambiente em que os pais viveram. Esse desenvolvimento começava desde o período embrionário e para que esse processo ocorresse tipicamente semelhante aos demais membros da espécie, era preciso que a mãe estivesse saudável durante o período da gestação. Mulheres saudáveis tinham mais chances de ter uma gestação de sucesso, bem como sua prole crescia mais saudável tendo a mãe como cuidadora. Logo após o nascimento, o bebê ainda precisava ser nutrido pelo leite da mãe e o somente uma mãe saudável proveria um leite com todos os nutrientes necessários para crescimento e saúde do recém-nascido. Após o término dessa dependência nutricional do filhote, ele também precisava de outros cuidados que lhe ensinavam as primeiras habilidades que garantiriam sua própria sobrevivência. A mãe tendo boa saúde, consequentemente teria também mais tempo de vida.

A longevidade feminina também exercia outro tipo de papel na sobrevivência da espécie. O surgimento das avós contribuiu como um auxilio à mãe que era menos experiente e precisava cuidar de vários filhotes além de se engajar na atividade de coleta e contribuir com o provimento das crias, pois o ser humano tinha desvantagens biológicas em competição por alimento com outras espécies, apesar de compensar parte delas com o advento do uso, criação e armazenamento de ferramentas. O mesmo ocorre com a longevidade masculina, como auxílio à paternidade. O avô era um homem mais experiente e, sendo o ser humano capaz de falar e descrever acontecimentos, o avô é responsável por compartilhar conhecimento com os mais jovens, uma vez que ele provavelmente foi exposto a situações adversas durante sua vida e sobreviveu. A transmissão cultural da experiência pode ser um valor atribuído aos mais velhos (Resende, 2011), razão pela qual os humanos podem ter se ocupado em zelar pelos seus idosos e garantir a extensão da sua sobrevivência.

As mulheres são mais resistentes e tem maior expectativa de vida. Se homens e mulheres nascessem precisamente em mesma proporção, o número de homens disponíveis para cada mulher ficaria bastante reduzido em um ambiente altamente competitivo. No entanto, a porcentagem de natalidade masculina é um pouco maior que a feminina. Na década de 1960, Dr. Landrum Brewer Shettles (1909-2003) publicou achados em que dizia haver uma diferença de habilidade de deslocamento entre espermatozoides X e espermatozoides Y. Os espermatozoides com informação genética masculina seriam mais ágeis e tenderiam a alcançar o óvulo com mais rapidez que o seu concorrente feminino. Com isso, a probabilidade de fecundação pelo espermatozoide Y seria mais alta que os 50% previstos em função da produção igual de espermatozoides com cargas distintas. Contudo, estudos posteriores revelaram que as observações de Dr. Shettles não foram tão precisas e através de análise computadorizada de esperma, constatou-se que não há diferença morfológica entre os tipos de espermatozoide e que nenhum se desloca mais rapidamente que o outro (Grant, 2006). A diferença na natalidade entre meninos e meninas pode ocorrer em função de algum outro fator não genético.

Ainda assim, os homens nascem em maior quantidade, todavia são mais suscetíveis à mortalidade precoce durante toda a vida, seja por uma fragilidade natural em relação às mulheres ou pela forma como ocorre o seu desenvolvimento. No Brasil, a mortalidade infantil (0 a 9 anos) masculina deve-se principalmente a causas perinatais. Durante a adolescência e o início da vida adulta (10 a 39 anos), a maioria das mortes passa a ser em decorrência de causas externas (e. g. homicídio e acidentes de trânsito) e da idade adulta mais madura até a velhice (de 40 anos em diante), as causas principais são as doenças do aparelho circulatório (Laurenti, Jorge & Gotlieb, 2005).

Problemas no coração e comportamento agressivo são, então, os principais fatores de risco que se desenvolvem ao longo da vida individual dos homens. As mulheres tem menor tendência a sofrer ataques cardíacos em função do estrogênio, entretanto, após a menopausa, o risco começa a se aproximar ao dos homens (para melhor esclarecimento ver Stramba-Badiale, Fox, Priori, Collins, Daly, Graham, Jonsson, Schenck-Gustafsson & Tendera, 2006).

O MAOA é um gene que codifica a enzima monoamina oxidase A e diminui a quantidade de neurotransmissores de dopamina, noradrenalina e serotonina. Existe uma mutação do gene MAOA em MAOA-L que codifica produção em excesso de monoamina e, com isso, diminui drasticamente os neurotransmissores, o que poderia aumentar os níveis de agressividade. No entanto, essa mutação é um distúrbio raro. Simpson (2001) identifica evidências de que o comportamento agressivo está correlacionado a testosterona. Zethraeus, Kocoska-Maras, Ellingsen, von Schoultz, Hirschberg e Johannesson (2009) realizaram um experimento em três grupos de mulheres na menopausa tratando um grupo com estrogênio, um outro com testosterona e um terceiro com placebo e mediram atitudes de risco em situações de experimento econômico medindo e não encontraram diferença de desempenho entre os grupos.

Variáveis da experiência de vida tanto das mulheres quanto dos homens também são responsáveis pela ocorrência de comportamento de risco. A violência urbana está atrelada às múltiplas situações aversivas que a vida em grandes comunidades propicia (Andery & Sério, 2001). Laurenti et al (2005) relatam que práticas culturais levam o homem a ser menos cuidado pela sociedade e por si mesmo. Não existem no Brasil programas de saúde voltados especificamente para o homem adulto como há para crianças, mulheres e idosos nem ações educativas tão massivas quanto à prevenção do câncer de próstata e de pulmão como os programas de adesão ao tratamento do câncer de mama e de colo do útero. Além disso, como tradicionalmente é legado à mulher o papel de acompanhar crianças, idosos e outros adultos em atendimentos clínicos e hospitalares, a mulher teria maior sensibilidade à necessidade de consultar um médico mediante qualquer suspeita de problemas de saúde.

Em suma, é provável que haja mais mulher do que homens porque a longevidade feminina foi selecionada filogeneticamente em virtude do seu papel como geradora e cuidadora da prole; porque ontogeneticamente o homem está mais propenso à mortalidade por causas externas; porque causas próximas genético-fisiológicas desfavorecem os homens quanto à imunidade e à velocidade de envelhecimento e porque funcionalmente, as mulheres mais velhas contribuem para a formação dos netos uma vez que as mães estão engajadas em outras atividades concorrentes à criação dos próprios filhos.

Até a próxima, pessoal!
Rubilene Borges

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Referências

Andery, M. A. P. A. & Sério, T. M. A. P. (2001). A violência urbana: aplica-se à análise da coerção? Em R. A. Banaco (Org.) Sobre Comportamento e Cognição: aspectos teóricos, metodológicos e de formação em Análise do Comportamento e Terapia Cognitiva, 1 (pp. 382-392). Santo André: Arbytes.

Grant, V. J. (2006). Entrenched misinformation about X and Y sperm. British Medical Journal, 332, 916-916 DOI: 10.1136/bmj.332.7546.916-b

Hunter, P. (2010) The psycho gene. The European Molecular Biology Organization Reports, 11, 667-669.

IBGE (2012). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

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Laurenti, R., Jorge, M. H. P. M., & Gotlieb, S. L. D. (2005). Perfil epidemiológico da morbi-mortalidade masculina. Ciência & Saúde Coletiva, 10, 35-46.

Pinheiro, I., Dejager, L., & Libert, C. (2011). X-chromossome-located microRNAs in  immunity: might they explain male/female differences? Bioessays, 33, 791-802.

Resende, B. D. (2011). Contribuições da perspectiva evolucionista para a Gerontologia.  Revista Kairós Gerontologia, 14, 99-107.

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Stramba-Badiale, M., Fox, K. M., Priori, S. G., Collins, P., Daly, C., Graham, I., Jonsson, B., Schenck-Gustafsson, K., & Tendera, M. (2006). Cardiovascular diseases in women: a statement from the policy conference of the European Society of Cardiology. European Heart Journal, 27, 994-1005.

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Zethraeus, N., Kocoska-Maras, L., Ellingsen, T., von Schoultz, B., Hirschberg, A. L., & Johannesson, M. (2009). A randomized trial of the effect of estrogen and testosterone on economic behavior. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 106, 6535-6538.