"[...]Por humanização compreendemos a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. Os valores que norteiam essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, os vínculos solidários e a participação coletiva nas práticas de saúde [...]".
Eis o que o Ministério da Saúde, através da Secretaria de Atenção à Saúde, descreve em sua cartilha "Saúde e Trabalho",publicada em 2011. De fato, é uma redação aprazível de ser lida que, a uma primeira vista, parece descrever (mesmo que de forma bastante ampla) todo o necessário para que as diferentes ações e instâncias do SUS sejam atravessadas pela Política Nacional de Humanização (PNH), de forma a aparentar, ainda, que este é um processo de fácil estruturação. Ilustremos a nossa conversa com alguns dos quadrinhos expostos na cartilha supracitada:
A primeira indagação é realmente muito pertinente (e bastante presente no ambiente de trabalho do SUS). A resposta dada, entretanto, apesar de bem"apresentada", não descreveu, de fato, como se daria a operacionalização de tudo o que a personagem havia acabado de proferir, dando margem para a indagação da última pergunta do quadrinho.
A história segue com a exemplificação de um caso de marcação de consultas: de acordo com as regras da unidade de saúde, são agendadas apenas 10 consultas médicas por dia, deixando mais duas vagas "extras" para possíveis intercorrências; entretanto, o que geralmente ocorre no cotidiano da unidade de saúde é a existência de um número bem maior de casos extras para serem atendidos. De acordo com a cartilha, a solução do problema estaria (e isso já levando em consideração a PNH) na articulação realizada com cada médico para saber das suas disponibilidades para possíveis outros atendimentos no dia, disponibilidade esta nem sempre disposta por todos os médicos. Esta atitude de modificação da prescrição dos atendimentos do dia foi denominada de "fazer gestão do trabalho".
A partir da descrição deste caso, utilizemos a retórica a fim de aguçarmos um pouco mais a análise da situação: seria essa a solução mais adequada para o problema, uma vez que, além de envolver um custo alto de respostas da atendente que agenda as consultas (parar o que estiver fazendo, ir atrás do médico, convencê-lo de atender aos outros casos e voltar para dar o feedback para cada paciente), ainda estaria condicionada à disponibilidade (e "boa vontade") dos médicos? Se a situação de um número alto de intercorrências durante o dia já é mais comum do que aquela prescrita por quem organiza a unidade de saúde, por que não planejar outra estratégia de solução de problemas que condiza com a realidade da unidade? Será que "obrigar" os médicos a atenderem todos os pacientes (visto que as contingências em vigor em uma situação como essa contribuem para classificá-los como profissionais "desumanos" caso se recusem a atender todos os pacientes) é valorizar este profissional, de acordo com o descrito pela PNH? E, por mais que esta seja, de fato, uma medida aceitável para solucionar o problema, será que essas recepcionistas são devidamente treinadas (de forma a adquirir o repertório comportamental necessário para lidar com situações como essas, muitas vezes estressantes) para poderem ser cobradas como "auto-gestoras" do seu trabalho?
Sigamos nossa discussão observando mais esta tirinha:
Ora, se "não é para humanizar as pessoas, mas as relações", necessário é que se dê a devida atenção aos comportamentos emitidos por todos os envolvidos na realidade de uma unidade de saúde, de forma que passem a responder discriminadamente aos estímulos presentes neste contexto, aumentando ou diminuindo a probabilidade de emissão de determinados comportamentos.
Aí está o diferencial da visão de um analista do comportamento: não basta, apenas, que falas como "produzir relações mais humanas, relações mais saudáveis..."sejam proferidas; necessário é que uma análise funcional da situação (por mais complexa que seja, uma vez que envolve um número muito grande de variáveis) seja realizada para que intervenções mais precisas e eficientes sejam efetivadas.
Assim sendo, ao se observar o contexto da unidade de saúde exposto no exemplo supracitado, verifica-se um inchaço de atendimento aos usuários, o que gera (dentre outras coisas), na maioria das vezes, reclamações por parte destes, insatisfação dos médicos em ter que fazer hora extra para atender a todos, e desgaste do recepcionista para poder arrumar a agenda de atendimentos.
Objetivando solucionar esses problemas, uma série de medidas (partindo, primeiramente, da análise de toda a situação para uma posterior intervenção) poderia ser tomada, a saber: investigar os possíveis motivos de aquela unidade estar recebendo uma demanda grande de usuários (o que implica em, dentre outras coisas, fazer uma análise dos serviços prestados por outras unidades próximas e dos serviços prestados pelos próprios médicos da referida unidade, averiguando suas especialidades também), de forma a tentar encaminhar parte dessas pessoas para outros locais de atendimento; ter um maior conhecimento sobre a organização das escalas dos médicos para, dessa forma, conseguir melhor organizar os seus atendimentos; e propor à direção da unidade, caso averigue-se que seja realmente necessário, um aumento de carga horária desses profissionais de saúde ou mesmo dos seus dias de trabalho, objetivando atendimentos de qualidade para todos os usuários que buscam a unidade.
"Humanizar"deveria ser uma ação pautada muito mais em atitudes como essas acima descritas (que envolvem um compromisso bem maior com o trabalho, uma vez que tem por base a junção da pesquisa com a intervenção) do que em outras ações que aparentam, apenas, "remediar" a situação existente.
Outra medida que também pode ser adotada é a demonstrada abaixo:
Sem dúvida, rodas de conversa como essas também podem ser de grande valia para o aperfeiçoamento do trabalho que é realizado dentro de uma unidade de saúde, uma vez que propicia um espaço de diálogo e trocas de experiências que podem auxiliar na aprendizagem de novas estratégias para o desenvolvimento do trabalho. Entretanto, o que não se pode esquecer é que de nada adiantará todas as conversas e discussões travadas, bem como todas as mudanças especuladas a partir de grupos como esses, se não for dada a devida atenção ao ambiente de trabalho em si, às contingências em vigor ali dispostas, de forma que as ações de intervenção sejam pautadas em soluções pertinentes e exequíveis.
Que possamos, sim, dar o devido valor às políticas públicas de nossa Nação, mas que, para além disso, saibamos analisá-las criticamente, não nos deixando ludibriar por construções frasais bem feitas, de forma a contribuir com a sociedade da melhor maneira que podemos: como pesquisadores que atuam profissionalmente de forma ética.
Abraços humanos e humanizados!
Flávia Almeida
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Referência
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização e da Atenção e Gestão do SUS. (2011). Saúde e Trabalho. Brasília-DF.