Sherlock Holmes: o avô de Watson


Onde a psicologia estaria hoje se o investigador mais consagrado na literatura universal tivesse se autointitulado behaviorista?

Não, o Baboseiras não virou site de fofoca de novelas clássicas nem espaço pra FanFics. Continuamos em busca do mantra científico moderno – empírico, reflexivo e longe de ser divertido. De fato o primeiro início que pensei para este post era:

 “Um dos grandes desafios do analista do comportamento neste início de século XXI é o de identificar as relações de controle em vigor para um organismo entre os três níveis de seleção definidos por Skinner”.

Quase um bom começo de capítulo. Mas o interesse em publicar no blog (aliada a falta de dinheiro para publicar um livro), me conduziram à uma abordagem um pouco diferente.

Podemos começar com a pergunta lá em cima: você já parou para pensar onde a psicologia estaria hoje se o investigador mais consagrado na literatura universal tivesse se autointitulado behaviorista?

Para quem ainda não se aventurou formalmente nas aventuras de Sherlock Holmes (digo formalmente pensando na série de contos e novelas, mas se você já conheceu a versão lutador de MMA – embora não menos dependente de entorpecentes – de Robert Downey Jr. já serve como ilustração), eu diria que vale à pena, principalmente se você está numa etapa inicial de seus estudos sobre o behaviorismo e a análise do comportamento.

Sherlock lança mão de diversas habilidades imprescindíveis ao analista do comportamento que podem ser observadas em diferentes momentos da obra de Arthur Connan Doyle. Para elencar algumas, tem-se: a  preocupação com uma explicação externalista, a inferência das relações de controle dos fenômenos sobre os quais ele se debruça a partir de evidências ambientais e a análise funcional em diferentes níveis de complexidade.

Para destacar a primeira habilidade, segue um pequeno trecho do conto A Liga dos Cabeça Vermelhas ao dirigir-se a seu amigo, Dr. Watson, diz  que “se quisermos encontrar efeitos estranhos e combinações extraordinários, devemos procurar na própria vida, que vai sempre muito mais longe do que qualquer esforço da imaginação” (Doyle, 1892/2011). Parece satisfatoriamente claro o objetivo de Holmes em buscar a solução dos inúmeros casos que lhe chegavam a partir de uma atenção sobre o contexto em que eles se passaram bem como da história dos acontecimentos e relações humanas possivelmente envolvidas. Percebe que em nenhum momento pôs-se de fora o papel exercido pelos personagens de qualquer um dos enredos trazidos até nosso investigador, mas apenas que a especulação restrita sobre os motivos de cada um desses personagens é tão desaconselhável quanto infértil.

Mais valeria, assim, investir na observação das evidências ambientais que dão pista à descrição das relações de controle do comportamento (as contingências, em behaviorês). Sobre este ponto, nenhuma outra história me parece tão pictórica quanto à do “Homem da Boca Torta” (Doyle, 1891/2011). A conclusão de Holmes que culmina como desmascaramento do Sr. Neville St.Clair – um notável que se passava por mendigo para tirar um extra para a família e que, ao quase ser apanhado em flagrante por sua esposa, acaba vendo-se como acusado do próprio assassinato – parece não apenas improvável como inimaginável ao desatento. Mas, com a demonstração de um excelente repertório dedutivo, o mito da genialidade se dissipa e não sobre nada além de uma cadeia comportamental encadeada e que o conduza solução, agora, óbvia para o caso, que devolve a liberdade à nosso notável impostor.

Por fim (deste texto e não das possibilidades interpretativas), o caso da “Banda Malhada” (Doyle, 1892/2011) releva um exercício de análise, por parte de nosso herói, que leva em conta a articulação de conhecimentos múltiplos. É verdade que não será possível dizer que ele já praticava algo como uma análise em níveis de seleção do comportamento como seria proposto por seu tataraneto intelectual – B. F. Skinner –, mas acredito que se valer de conhecimentos em biogeografia e antropologia para condução de um caso será suficiente para sugerir que ele já ensaiava uma abordagem transdisciplinar para as ciências do comportamento. Para constar, neste caso Holmes é conduzido à mansão dos Roylott de Stoke Moran – uma família fictícia de tradição secular na Inglaterra – onde o último representante desta linhagem nobre é descoberto por nosso detetive como o algoz cruel de um crime que envolve o veneno de uma víbora do oriente, a sagacidade do raciocínio de um médico e as práticas de um povo cigano.

A esta altura, simplesmente sugerir a leitura de Holmes parece inevitável. Mas não é apenas com isso que podemos concluir. As histórias desse personagem podem ser ainda infinitamente frutíferas para posteriores ensaios e alguns dos temas quenãome ative a tratar são: os limites e possibilidades do método observacional-dedutivo de Holmes e seu uso na AC, o por que da incompreensão constante do médico Watson em relação aos métodos de seu genial amigo, além de outros que eu possivelmente não serei capaz de elencar.

Realmente devo pedir desculpas se não respondi a pergunta que me lancei logo no início do texto. Mas deixo, em seu lugar, que a própria fala de Sherlock Homes encerre esta reflexão com a sugestão de um possível desfecho para essa inquietação: “Se pudéssemos sair de mãos dadas voando por aquela janela, pairar sobre esta grande cidade [Londres] remover suavemente os telhados e espreitar as esquisitices que estão acontecendo (...) [e] que atravessam as gerações conduzem aos resultados mais estapafúrdios, toda ficção, com suas convenções e conclusões previsíveis, pareceria extremamente batida e inútil.” (Doyle, 1891/2011).

Um abraço,
Luiz Henrique
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Referência
Doyle, A. C. (2011). As Aventuras de Sherlock Holmes. Rio de Janeiro: Zahar.